A palavra no escuro
A palavra escrita sempre me intimidou profundamente.
Quando criança, eu costumava me esforçar muito para escrever da maneira que outras pessoas queriam que eu escrevesse. Na hora de assinar meus desenhos subitamente alojava-se em mim uma estranha dúvida: para que lado a letra deve estar virada?
Marcado por tropeços e tombos, me encontrava sempre confuso no meio dos símbolos e das palavras. Confundia letras parecidas, escrevia ao contrário e errava implacavelmente a gramática, principalmente quando entrava em contato com acentos visualmente parecidos.
Além desse aspecto visual, tudo o que soava minimamente parecido se misturava na minha mente. O “D” e o “T”, o “M” e o “N”, o “C” e o “Ç”, etc.
Escrever insistentemente nos cadernos de caligrafia, na busca de uma letra que o professor Ronaldo, de português na primeira série, considerasse aceitável, também é uma das memórias mais sofridas que tenho da época. A palavra não veio fácil pra mim como veio o desenho naquela idade. Não a palavra escrita, pelo menos.
“Eu não acredito em palavras, não importa se amarradas pelo homem mais habilidoso: Eu acredito em linguagem, que é algo além das palavras, algo para o que as palavras dão apenas uma ilusão adequada.”
Henry Miller
O conflito entre palavra e linguagem, como você deve estar percebendo, sempre existiu em mim. Sempre me percebi uma pessoa comunicativa, notando certa facilidade em transportar ideias através da minha voz >> interpretar a palavra do outro no intuito de realmente ter uma imagem mais clara de seu interior para >> responder qual minha visão sobre o ser que enxergo, e firmar uma ponte no som de nossas vozes.
Mas escrever a palavra é como conversar sozinho, não há troca instantânea. Todo texto é um tipo de monólogo assistido por um público fantasma. É como o tempo, só é possível observá-lo em retrocesso. Não podemos ver o futuro, mas estamos sempre assistindo o passado. No momento em que escrevo, não posso assistir em tempo real a quem lê as palavras que manipulo. Mas o leitor imediatamente enxerga quem escreve. Quem lê o texto vê o passado, entra na mente do escritor que, um dia, compôs um texto.
Como a Voyager 1, a sonda espacial enviada para o infinito do cosmos que carrega a música da humanidade como uma mensagem para o infinito, sem uma pretensão de resposta imediata, o texto é criado e lançado para o mundo. Quem vai ler, como vão se afetar, o que vão pensar, está longe de você quando você está atento ao ato de escrever.
Na escrita, sempre me percebi uma pessoa confusa. Por quê?
A palavra escrita é um símbolo, ela é uma convenção social. O dicionário te mostra o que as pessoas querem dizer com determinado símbolo em forma de palavra, e para se comunicar você se limita àquela interpretação. Em todas as línguas existem várias palavras diferentes para as diversas nuances de uma sensação maior. “Saudade”, “Falta”, “Carência”, são conceitos próximos e irmãos, são como tons de uma mesma cor.
Mas pensando dessa forma, podemos perceber que possivelmente devem existir milhões de tons de cor para os quais não temos palavras. As palavras pavimentam nossa comunicação, mas irreversivelmente limitam a direção para qual podemos seguir. Já que não existe uma única verdade imperadora na mente de todas pessoas, a maneira como absorvemos e entendemos as palavras e seus significados divergem.
Toda palavra escrita é uma meia-verdade
Quando escrevemos, lidamos puramente com palavras e figuras de linguagem. Não tem o olhar, a gesticulação, a expressão do rosto ou o tom de voz que auxiliam tanto na contação de histórias. A escrita é a transposição imediata de como seu pensamento se traduz em palavras. Quando se lê, se entra na teia de pensamentos dos outros. Mas como posso saber que o azul que você vê é o mesmo que eu vejo? Como posso ter certeza absoluta que entendemos a mesma palavra de um único ponto de vista? A sua “Saudade” é a minha “Saudade”?
Em algum momento acredito que todos tivemos a vontade de transportar um sentimento ou uma sensação específica instantaneamente para dentro da cabeça de outra pessoa. Não seria tão mais fácil poder compartilhar sentimentos e sensações aprisionadas no nosso corpo de maneira tão direta? Não seria tão óbvio notarmos como cada ser humano é um oceano emocional, com vários tons de cores que você não conhecia?
Irônico é eu me comunicar com você através da palavra escrita. Me encontro aqui, nesse meu momento passado, falando com você no futuro. No presente de quem lê eu posso nem existir, até onde sei no tempo que escrevo. Limitado e confuso com as poucas palavras que tenho, me permito arriscar a escrever, e espero através desse veículo de palavras na internet, transportar algo para fora.
Convido timidamente a quem se interessar para me acompanhar nessa jornada que é escrever para o Guia da Alma, essa plataforma de ideias que tenho agora a honra de fazer parte. Me sinto entrando em uma caverna interessantemente desconhecida e escura. Despretensioso, manifesto esse brado no escuro, uma garrafa com uma mensagem jogada no oceano, um pombo-correio solto na floresta, uma sonda no espaço. Aceito que isso é tudo o que está ao meu controle. Sigo em frente, tateando as paredes. Calo minha mente em face ao caminho escuro. E da luz, humildemente, me despeço.
Ilustração e música: Monge Han